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Bate-papo sobre os desafios e oportunidades da educação inclusiva no ensino médio

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Durante a Semana de Ação Mundial, que tinha a intenção de promover discussões acerca do direito à educação inclusiva – por uma escola e um mundo para todos –, o Instituto Rodrigo Mendes, em parceria com Instituto Unibanco, realizaram diálogos abertos ao público sobre ensino médio, políticas públicas educacionais, direitos humanos, e os desafios e oportunidades da educação inclusiva.

Palco com Rodrigo Hübner Mendes, Liliane Garcez, Ricardo Henriques e interprete de libras, banner com o texto: Ensino médio: Desafios e oportunidades da educação inclusiva

Na ocasião, foi apresentado o documentário sobre a experiência educacional inclusiva do Colégio Coronel Pilar em Santa Maria (RS). O bate-papo contou com a participação de Rodrigo Hübner Mendes, superintendente do Instituto Rodrigo Mendes, Liliane Garcez, assessora especial da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida de São Paulo e Ricardo Henriques, superintendente executivo do Instituto Unibanco. Você pode conferir parte da conversa sobre os desafios e oportunidades da educação inclusiva no ensino médio na entrevista a seguir.

1. O que deveria ser incluso, principalmente na formação inicial, para que os professores passem a dialogar com essa educação inclusiva?

Liliane – Na formação inicial, a gente discute muito pouco sobre a educação. A fragmentação do conhecimento que está posto nas faculdades de educação quase impossibilita que o estudante, que partilha dessa formação, dialogue sobre o objeto de estudo dele próprio. É como se a gente formasse professores sem levar em consideração o lugar que ele vai estar e as pessoas com quem ele vai viver.

Quando fiz o mestrado em educação, mesmo quando fiz psicologia, a brincadeirinha era que a gente formava um professor para um aluno em uma escola que não existe. Conhecer essa escola e conhecer esses alunos é muito importante. A gente deveria ensinar todo o professor que ao chegar à sala de aula, ao invés de ele estabelecer que os alunos da frente são bons alunos e, portanto, vão passar de ano, os do meio são mais ou menos e os do fundo não vão aprender nada porque são vagabundos. A gente deveria ensinar o professor a conhecer esse aluno para poder planejar a sua aula.

E o que se aprende nas faculdades de educação é que você tem que fazer esse planejamento e implementá-lo. Nesse sentido, de vez em quando, a gente sente que a escola iria muito bem se não tivesse aluno, ou que o diretor faria uma gestão muito bacana se não tivesse professor. Parece que o outro nos atrapalha e a diversidade, em vez de ser um desafio, é um empecilho. E aí vem a ideia de tratar o diferente como um doente ou como um a menos, como aquele que “não é”.

Acho que se deveria incluir um estudo mais transdisciplinar, mais inter-relacional entre as disciplinas. A gente estabelece muitas caixinhas diferentes, uma para cada área do conhecimento, e isso tem um efeito perverso dentro da escola. Queremos implementar o nosso planejamento e esquecemos que não é nosso planejamento o que está se fazendo com aqueles meninos e meninas. Estamos ensinando o que é o nosso mundo. E acho que o que a gente está falando é que o nosso mundo é muito chato, muito ruim e muito preconceituoso. A inclusão desse estudo mais transdisciplinar precisa ser feita dentro das nossas universidades.

Ricardo – Nas formações iniciais nas licenciaturas e pedagogias, umas das coisas que a gente vê o tempo todo é que se constrói uma visão que o melhor modo de ensinar é a partir de uma escola ideal e de um aluno ideal, então você idealiza esse aluno. Eu sempre sentei na última cadeira. Esse aluno ideal é a expressão da intolerância. A alegoria do aluno ideal é o dedicado, o bem comportado, pertinente, que não faz bagunça, bem vestido e cheiroso, porque resolve tudo e não atrapalha, e branco, com certeza, sem deficiência alguma, cabeludo e heterossexual. O perverso do tipo ideal, não é o tipo ideal em si, é que esse tipo ideal não tolera a diferença.

Então, o que você faz no processo de ensino e aprendizagem desde a primeira infância? É fazer uma alegoria que é real, a menina gorda e negra não tem espaço na escola para se manifestar, e evidentemente se ela tiver deficiência isso será mais radical. O que acontece nisso? Eu crio signos e modos de implementar um cotidiano de aprendizagem que tudo o que é diferente, isto vem desde a primeira infância, não é visto como aquilo que pode ser acolhido. E eu vou reproduzindo isso ao longo de todo o ciclo de aprendizagem e depois eu vou contar que tem igualdade e oportunidade porque a pessoa está na escola. Só que eu fui desmontando os campos de igualdade e oportunidade de forma objetiva, não só subjetiva, desde o início do processo, e esta amarra da idealização do aluno e a amarra da idealização da escola, que não é só brasileira, isso é absolutamente fundamental de ser visto.

O que acontece com o professor na nossa realidade brasileira, é que ele não é formado sequer para montar um plano de aula, eu estou falando de coisas muito simples. A revolução na educação brasileira se dá a partir do simples, não se dá a partir do espetáculo. Agora, a nossa licenciatura e pedagogia da teoria está correta. Não há nenhuma ciência em nenhuma estrutura disciplinar em qualquer ordem do saber que seja vazia ou superficial em teoria, é preciso ter teoria sólida, no entanto. O outro lado parece que não faz parte do cotidiano formativo dos nossos professores, das nossas professoras.

Eu estou fazendo uma alegoria do plano de aula, mas é a mesma coisa de quando você pega um professor de biologia, uma professora de química, que tem 12 anos de serviço, é muito boa e diz para ela assim: “agora você é diretora e vai pegar uma escola de 1.200 crianças ou jovens”. E lá, na formação inicial dela, nunca lembraram de dizer que isso faz parte desse processo de escola-aprendizagem, que é a possibilidade de você ser um dirigente também. Isso não existe. Então, você não forma em nada para dirigente, não forma em nada para práticas cotidianas. Você tira o simples desse processo de ensino e aprendizagem, o complexo fica de uma forma que se torna complicado e não lida com o complexo e descasa com o cotidiano nosso, que é o cotidiano fundamental de processo de ensino e aprendizagem que criam vínculos, relações de valor e relações de confiança, que não podem se dar se eu simplesmente homogeneízo. E depois, as pessoas acham estranho que esses alunos que estão na escola não confiam no sistema de valores passados pelos professores, porque é óbvio que o distanciamento é tamanho, que você vira um adolescente que não cria nenhuma capacidade de empatia com aquilo que é dito. Então, aquela fala conteudística ou não, não cria nenhuma capacidade de vínculo, de empatia e você simplesmente fica descrente daquele processo.

É um círculo vicioso que na formação inicial se torna cristalino, e evidentemente, como nós estamos em uma sociedade desigual, a matriz das grandes federais, que faz com que essa visão dissociada dos desafios dos chãos de fábrica da escola do cotidiano, dos desafios da inclusão, dos desafios de lidar com pessoas com deficiência, isso vai rebater para dentro da escola federal, rebater para a escola privada do tipo A, para a escola privada do tipo B, para a escola privada do tipo C, que é quem forma a grande maioria dos professores e você naturaliza esse estar no processo de ensino e aprendizagem, sem instrumentos que tenham a ver com pertinência, com relevância, com simplicidade, empatia, com o cotidiano. Me basta estar dentro de conteúdos formais distanciados, esperando que aquele que lá está seja um médio representativo, um idealizado, que vai ter que absorver tudo que eu conseguir passar naquele espaço da sala de aula.

A gente precisa sair dessa amarra, que eu acho que é uma amarra conservadora no mundo da pedagogia e da licenciatura. Matizado por tradições de esquerda e progressistas, que o são efetivamente em um domínio da disputa progressista, mas que quando rebatem a questão do que se dá no ambiente da sala de aula, assumem o mais conservador dos nossos vícios, que é esse processo de idealização, de não criação de vínculo, desse processo de distanciamento, e que obviamente é intolerante, e a intolerância não contempla a diversidade, não contempla a diferença.

Rodrigo – A gente teve a chance de visitar o ministério francês há dois anos e conversar com a equipe que cuida da educação voltada ao público-alvo da educação especial e pudemos entender qual o modelo atual deles sobre esse tipo de encaminhamento. E eles tem um contínuo de serviços, desde a situação ainda de segregação até a proposta de inclusão. Mas a proposta de inserção real de uma criança com deficiência na sala comum é ligada ao discurso que a gente ouve que é “nós somos inclusivos e a gente traz a criança com deficiência para o ambiente comum, desde que ela se adapte”. Na Alemanha, ainda é pior, menos de 10% das escolas são inclusivas, na Suíça não existe o modelo da escola inclusiva, então, a eventual fantasia que a gente faz que países desenvolvidos teriam mais condições de investir e apresentar modelos mais pioneiros, ela, de fato, não deve ser alimentada.

2. A escola no Brasil como instituição está preparada para inclusão nos grandes centros ou nos locais mais afastados?

Ricardo – A heterogeneidade de territórios é avassaladora no Brasil, obviamente por sermos continentais, quando a gente está falando de escolas do mundo rural, escolas quilombolas, escolas ribeirinhas, escolas indígenas, escolas em assentamentos, evidentemente essa é só a expressão dessa complexa diversidade que você tem. Se você acreditar que o padrão dessa escola, do ponto de vista dos requisitos formais para serem exercidos é o mesmo de uma escola de duas mil pessoas no centro metropolitano você, no mínimo, tem que ter um “Q” de pragmatismo para entender essa realidade. No Pará, as regiões das águas, a depender você passa alguns meses que não tem acesso. Eu estive uma vez em uma escola médio técnica em São José da Capixoeira, na cabeça do cachorro, na pontinha do mapa. São sete horas de voadeira, da sede do município de São Gabriel para chegar na escola. Então, a questão do mundo território é pouco considerada com as políticas públicas e é um dos nossos maiores desafios. Não é muito diferente de parte do desafio urbano quando você entra nas regiões de favelas no Brasil, se não considerar a questão de palafitas, não considerar a questão do aclive, morro no Rio de Janeiro para construir uma escola não é a mesma lógica de outros lugares, se eu não der conta do problema da acessibilidade para entender isso, eu fiz um pré-moldado que não acolhe as crianças daquela escola. A diversidade territorial é chave e é expressão de outra enorme fundamental diversidade de um país que tem 120 línguas e que se acha monolinguísta.

Liliane – Não é à toa que o Brasil, em termos de política pública, está muito mais avançado que a Europa, porque aprendemos que inclusão de fato só se dá quando eu tenho o diverso, os diferentes convivendo. Somos um país em que a diversidade está posta na nossa mesa, não tem como não quebrar a cabeça para dar conta desses diferentes, trabalhar todo mundo junto.

Eu tenho para mim que para os municípios está muito posta a questão de formação. Eu tive a oportunidade de trabalhar tanto no Ministério da Educação como em município, e por conta dessas questões que estão dadas em termos de formação inicial, são os municípios, hoje em dia, que estão fazendo grandes esforços para a formação continuada dar conta desses desafios que estão postos no cotidiano escolar. As formações, hoje, estão no nível municipal, e, jogando essa questão para o governo federal, desde 2003 a Secretaria de Educação Especial, e depois SECADI, desenvolve o Programa Educação Inclusiva Direito à Diversidade que faz um pouco o que o Ricardo está falando, de olhar as especificidades dos municípios para entender como essas cidades desenvolveram ações, argumentos e estratégias para dar conta dos desafios que lá estão postos e para romper com as barreiras para que todo mundo possa estar junto na escola.

O então Ministro da Educação, que hoje é prefeito da cidade de São Paulo, foi para a ilha de Marajó. E aí o FNDE subsidiava o transporte escolar, por ônibus. Levantaram a mão: “aqui não me serve, eu preciso de búfalo”. Como é que eu compro um búfalo? Como eu mantenho um búfalo? Porque esse é o transporte [60% das áreas são de mangue e o animal se adapta melhor no pântano, por possuir maior tração e rapidez nas áreas alagadas]. Então é assim, os desafios que são postos no Brasil, eles nos forçam a dar conta da diversidade, eles nos forçam, independente dessa diversidade estar relacionada ou não com a deficiência.

Essa questão da formação continuada é muito importante, porque além das modificações que a gente tem que fazer nos currículos, o diálogo dentro das escolas é fundamental para que a gente dê conta do que está posto lá, e isso é um pouco da ideia da formação continuada. Com relação às experiências que a gente vem tendo, a grande questão em termos de política pública é que o dinheiro já vem em caixinhas. Os orçamentos são em caixinhas. O sistema todo está montado para que cada um faça o seu, e isso absolutamente, de forma nenhuma dá conta das questões que as pessoas têm no seu dia a dia.

A gente está fazendo um esforço aqui na cidade de São Paulo. Lançamos o Plano Municipal de Ações Articuladas para as pessoas com deficiência, tentando juntar conversas de 20 secretarias. Eu acho que esse é o caminho: ou conversamos saúde, educação, trabalho, assistência social, ou não damos conta do dia a dia das pessoas. Porque a educação para pessoa com deficiência, se pensarmos, está bastante avançada. Temos muitos desafios, mas em termos de política pública, ela vem avançando. Só que quando saímos da educação, por vezes, na assistência social, esporte, no turismo ou na cultura, temos uma visão de pessoa com deficiência como aquele cidadão ainda de segunda categoria, que tem que ter acesso à saúde, à assistência e às vezes à educação, o resto não precisa. Então, cultura, lazer, todas essas questões não estão postas para o cidadão que tem alguma deficiência.

O recado final que eu queria deixar é, lembrando um pouco o que o Motobill coloca: a pessoa com deficiência faz ecoterapia e a sem deficiência faz hipismo, a pessoa com deficiência faz hidroterapia e a sem, faz natação. Então, toda essa perspectiva que a pessoa com deficiência precisa de tratamento, ela é da linha oposta ao que a gente quer na educação, que é trabalhar para a autonomia e participação plena de todas as pessoas, todos os estudantes, sem nenhuma vírgula, sem nenhum “desde que”.

3.Como a escola pode atuar em parceria com as famílias e a comunidade na educação inclusiva? Qual seria o papel desses outros sujeitos?

Liliane – No filme apresentado, a família investiu a Renata como potência de ação, para que ela fosse uma espécie de agente transformador do sistema. Não a colocou no papel de coitada, daquela que precisa ser cuidada, e sim no papel de jovem autônoma que tem direito à participação plena. Teve a compreensão que a Renata tinha direitos e que direitos precisam ser conquistados! Vale lembrar a definição de pessoa com deficiência que está posta na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006), ratificada no Brasil com status de emenda constitucional em 2008, que pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas. E a Renata, com o apoio da família, exerceu seu papel de sujeito de direitos e foi à luta, rompendo a barreira mais difícil, que é a atitudinal.

Por outro lado, a família ”cobrou” uma mudança de atitude da escola, o que potencializou as mudanças. Inclusão não é colocar quem estava fora dentro e manter o que está posto. Hannah Arendt reflete que a educação é a introdução dos novos no mundo. A entrada de cada um no mundo escolar é, portanto, a chance que temos de mudar e melhorar para que todos se sintam pertencentes e importantes nesse espaço. É o que chamamos de valorização das diferenças.

A inclusão é um processo. Isso não nos dá o direito de postergar as mudanças, obviamente, nem de fazer mudanças superficiais para ”fingir” que estamos coerentes com o discurso mais atual. A aproximação do discurso e da prática é uma busca constante das pessoas sem e com deficiência e de suas famílias. Ou seja, a participação de todas e todos, e aqui destaco a família e comunidade, na construção de uma escola democrática é essencial. Nesse contexto, é importante ressaltar que para além da ação individual, há os espaços que formalizam essa participação, como Conselhos de Escola, Conselho do FUNDEB, Associações de Pais e Mestres entre outros. Assim, ocupar esses espaços instituídos é um caminho importante para que as famílias e as comunidades atuem para efetivar o direito à educação inclusiva.

Além disso, ao levarmos a sério o conceito de inclusão, teremos que desenvolver olhares singularizados tanto para cada estudante, como para cada professor, para cada escola e seu projeto político pedagógico, para cada território. Nesse caso, articular cada equipamento público ou privado que compõe a comunidade em prol de não deixar ninguém de fora é também uma oportunidade de mudar práticas e pensamentos, no sentido de romper com espaços excludentes e ações discriminatórias.

Para saber mais sobre a história da Renata Basso e o estudo de caso sobre educação inclusiva no ensino médio, acesse: http://bit.ly/1rmB6en.